“Quanto ao justo, mesmo que morra antes da idade, gozará de repouso. A honra da velhice não provém de uma longa vida, e não se mede pelo número dos anos. Mas é a sabedoria que faz as vezes dos cabelos brancos; é uma vida pura que se tem em conta de velhice. Ele agradou a Deus e foi por ele amado, assim (Deus) o transferiu do meio dos pecadores onde vivia. Foi arrebatado para que a malícia lhe não corrompesse o sentimento, nem a astúcia lhe pervertesse a alma: porque a fascinação do vício atira um véu sobre a beleza moral, e o movimento das paixões mina uma alma ingênua. Tendo chegado rapidamente ao termo, percorreu uma longa carreira. Sua alma era agradável ao Senhor, e é por isso que ele o retirou depressa do meio da perversidade.” (Sb 4,7-15).
A morte prematura.
O Livro da Sabedoria (cf. 4, 7-15) recorda-nos que a verdadeira velhice veneranda não é somente a idade avançada, mas a sabedoria e uma existência pura, sem malícia. E se o Senhor chama para si um justo antes do tempo, é porque tem um desígnio de predileção para ele que nós desconhecemos: a morte prematura de uma pessoa que nos é querida torna-se assim um convite para não nos delongarmos a viver de modo medíocre, mas a tendermos depressa para a plenitude da vida. No texto da Sabedoria existe uma veia de paradoxo que encontramos também na perícope evangélica (cf. Mt 11, 25-30). Em ambas as leituras sobressai um contraste entre o que se manifesta ao olhar superficial dos homens e aquilo que, ao contrário, é visto pelos olhos de Deus. O mundo considera afortunado quem vive prolongadamente, mas Deus, mais do que a idade, visa a retidão do coração.
A vida verdadeira, a vida eterna, começa já neste mundo.
O mundo dá crédito aos “sábios” e aos “doutos”, enquanto Deus privilegia os “pequeninos”. O ensinamento geral que deriva disto é que existem duas dimensões do real: uma mais profunda, verdadeira e eterna, a outra caracterizada pelo limite, pela provisoriedade e pela aparência. Pois bem, é importante ressaltar que estas duas dimensões não são postas em simples sucessão temporal, como se a vida autêntica começasse somente depois da morte. Na realidade, a vida verdadeira, a vida eterna, começa já neste mundo, apesar da precariedade das vicissitudes da história; a vida eterna começa na medida em que nos abrimos ao mistério de Deus e o acolhemos no meio de nós. Deus é o Senhor da vida e é n’Ele “que vivemos, nos movemos e existimos” (At 17, 28), como São Paulo pôde dizer no areópago de Atenas.
O ensinamento da morte.
Deus é a verdadeira sabedoria que não envelhece, é a riqueza autêntica que não acaba, é a felicidade pela qual o coração de cada homem aspira profundamente. Esta verdade, que atravessa os Livros sapienciais e volta a sobressair no Novo Testamento, encontra o seu cumprimento na existência e no ensinamento de Jesus. Na perspectiva da sabedoria evangélica, a própria morte é portadora de um ensinamento salutar, porque obriga a enfrentar abertamente a realidade; leva a reconhecer a caducidade daquilo que parece grande e forte aos olhos do mundo. Diante da morte, qualquer motivo de orgulho humano perde interesse e, ao contrário, salienta aquilo que vale seriamente. Tudo termina, neste mundo todos nós somos passageiros. Somente Deus tem a vida em si, só Ele é a vida. A nossa vida é participada, concedida “ab alio”, e por isso o homem só pode alcançar a vida eterna graças à particular relação que o Criador lhe permitiu ter consigo mesmo. Mas Deus, vendo o afastamento de si por parte do homem, deu mais um passo, criou uma nova relação entre si mesmo e nós, da qual nos fala: Ele, Cristo, “entregou a sua vida por nós” (1 Jo 3,16).
Se Deus, escreve São João, nos amou gratuitamente, também nós podemos, e portanto devemos deixar-nos envolver por este movimento oblativo, e fazer de nós mesmos um dom gratuito pelos outros. Desta maneira, conhecemos Deus do mesmo modo como somos por Ele conhecidos; desta forma, permanecemos nele como Ele desejou permanecer em nós, e passamos da morte para a vida (cf. 1 Jo 3, 14), como Jesus Cristo, que derrotou a morte mediante a sua Ressurreição, graças ao poder glorioso do amor do Pai celestial.
Fonte: Parte da homilia proferida pelo Papa Emérito Bento XVI na ocasião da Santa Missa em sufrágio aos Cardeais e Bispos falecidos durante o ano. Basílica Vaticana, 03 de novembro de 2008.