Ave, oh Cruz, única esperança
A narrativa da Paixão de Cristo é o relato de uma morte violenta. Notícias de mortes, e mortes violentas, quase nunca faltam nos noticiários vespertinos. Estas notícias se sucedem com tal rapidez, que nos fazem esquecer, a cada noite, as do dia anterior. Por que, então, após 2000 anos, o mundo ainda recorda, como se tivesse acontecido ontem, a morte de Cristo? É que esta morte mudou para sempre o rosto da morte; ela deu um novo sentido à morte de cada ser humano.
A Morte de Cristo gera vida
“Chegando, porém, a Jesus, como o vissem já morto, não lhe quebraram as pernas, mas um dos soldados abriu-lhe o lado com uma lança e, imediatamente, saiu sangue e água” (Jo 19, 33-34). No início do seu ministério, àqueles que lhe perguntavam com qual autoridade ele expulsava os vendedores do templo, Jesus disse: “Destruí este templo e em três dias eu o levantarei”. “Ele falava do templo do seu corpo” (Jo 2, 19. 21), havia comentado João naquela ocasião, e eis que agora o próprio evangelista nos diz que do lado deste templo “destruído” jorram água e sangue. É uma clara alusão à profecia de Ezequiel que falava do futuro templo de Deus, daquele lado do qual jorra um fio de água que se torna primeiro um riacho, depois um rio navegável, em torno do qual floresce toda forma de vida. Mas, penetremos no epicentro da fonte deste “rio de água viva” (Jo 7, 38), no coração trespassado de Cristo.
A Cruz é o triunfo dos que sofrem.
A cruz não “está”, portanto, contra o mundo, mas pelo mundo: para dar um sentido a todo o sofrimento que houve, que há e que haverá na história humana. “Deus não enviou o Filho ao mundo para condenar o mundo – diz Jesus a Nicodemos –, mas para que o mundo seja salvo por Ele” (Jo 3, 17). A cruz é a proclamação viva de que a vitória final não é de quem triunfa sobre os outros, mas de quem triunfa sobre si mesmo; não daqueles que causam sofrimento, mas daqueles que sofrem. “Dum volvitur Orbis”, enquanto o mundo dá a sua órbita.
Onde morre Deus morre o homem.
Foi dito que “matar Deus é o suicídio mais horrendo”, e é isso que estamos vendo em parte. Não é verdade que “onde Deus nasce, o homem morre” (J.-P Sartre); o oposto é verdadeiro: onde morre Deus, morre o homem. Um pintor surrealista da segunda metade do século passado (Salvador Dalì) pintou um crucifixo que parece uma profecia desta situação. Uma imensa cruz, cósmica, com um Cristo acima, também monumental, visto do alto, com a cabeça inclinada para baixo. Abaixo dele, no entanto, não há nenhuma terra firme, mas a água. O Crucifixo não está suspenso entre o céu e a terra, mas entre o céu e o componente líquido do mundo (sociedade liquida).
Acima da sociedade liquida está Cristo!
Este quadro trágico (há também, no fundo, uma nuvem que poderia aludir à nuvem atômica), contém, no entanto, uma consoladora certeza: há esperança também para uma sociedade líquida como a nossa! Há esperança, porque acima dela “está a cruz de Cristo”. Sim, Deus está morto, morreu em seu Filho Jesus Cristo; mas não ficou no sepulcro, ressuscitou. “Vós o crucificastes – grita Pedro à multidão no dia de Pentecostes –, mas Deus o ressuscitou!” (At 2, 23-24). Ele é aquele que “estava morto, mas agora vive pelos séculos dos séculos” (Ap 1, 18).
O coração de carne, prometido por Deus nos profetas, já está presente no mundo: é o Coração de Cristo trespassado na cruz, aquele que veneramos como “o Sagrado Coração”. Ao receber a Eucaristia, acreditamos firmemente que aquele coração vem bater também dentro de nós. Olhando para a cruz daqui a pouco digamos do profundo do coração, como o publicano no templo: “Meu Deus, tem piedade de mim, pecador!”, e também nós, como ele, voltaremos para casa “justificados” (Lc 18, 13-14).
Fonte: Parte da pregação do Pe. Raniero Cantalamessa – sexta-feira Santa de 2017, na Basílica de São Pedro. Tradução de Tácio Siqueira. Na integra em ZENIT.