O sentido autêntico da religião consiste em viver na escuta de Deus para cumprir a sua vontade.
O Evangelho de hoje mostra-nos um perigo: com o passar do tempo, ao dom de Deus acrescentaram-se aplicações, obras e hábitos humanos que, crescendo, escondem aquilo que é próprio da sabedoria doada por Deus; tornando-se um verdadeiro vínculo que é preciso interromper, ou então que se leva à presunção: fomos nós que o inventamos!
Eis o problema: quando o povo se estabelece na terra e é depositário da Lei, sente-se tentado a depositar a sua segurança e a sua alegria em algo que já não é a Palavra do Senhor: nos bens, no poder e noutras “divindades” que na realidade são vãs, são ídolos. Sem dúvida, a Lei de Deus permanece, mas já não é a realidade mais importante, a regra da vida; ao contrário, torna-se um revestimento, uma cobertura, enquanto a vida segue outros percursos, outras regras, interesses muitas vezes egoístas, individuais e de grupo. E assim a religião perde o seu sentido autêntico, que consiste em viver na escuta de Deus para cumprir a sua vontade — que é a verdade do nosso ser — e assim viver bem, na verdadeira liberdade, e reduz-se à prática de costumes secundários, que satisfazem sobretudo a necessidade humana de descarregar a consciência em relação a Deus. E este é um grave risco de cada religião, que Jesus observou na sua época, mas que se pode verificar, infelizmente, também na cristandade. Por isso, as palavras de Jesus no Evangelho de hoje contra os escribas e os fariseus devem fazer pensar também em nós. Jesus faz suas as palavras do profeta Isaías: “Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. Em vão, pois, prestam-me culto, ensinando doutrinas e preceitos humanos” (Mc 7, 6-7; cf. Is 29, 13). E, depois, conclui: “Deixando de lado o mandamento de Deus, apegais-vos à tradição dos homens” (Mc 7, 8).
Segundo a nossa fé, a Igreja é o Israel que se tornou universal no qual, através do Senhor, todos se tornam filhos de Abraão; o Israel que se tornou universal, no qual persiste o núcleo essencial da lei, desprovido das contingências do tempo e do povo. Este núcleo é simplesmente o próprio Cristo, o amor de Deus por nós e o nosso amor por Ele e pelos homens. Ele é a Tora viva, é o dom de Deus por nós, no qual agora todos recebemos a sabedoria de Deus. No estar unidos a Cristo, no “com-caminhar” e no “com-viver” com Ele, nós mesmos aprendemos como ser homens de modo justo, recebemos a sabedoria que é verdade, sabemos viver e morrer, porque Ele mesmo é a vida e a verdade.
Fonte: Parte do discurso do Papa Emérito Bento XVI, durante a oração do Angelus. Domingo 02 de setembro de 2012.