“Sine dominico non possumus!”
Sem o dom do Senhor, sem o Dia do Senhor não podemos viver: responderam alguns cristãos em Abitínia, atual Tunísia, no ano de 304 quando, surpreendidos durante a Celebração eucarística dominical, que era proibida, foram levados diante do juiz e interrogados porque tinham realizado no domingo a função religiosa cristã, mesmo sabendo que o fato era punido com a morte. “Sine dominico non possumus”. Na palavra dominicum/dominico estão entrelaçados indissoluvelmente dois significados, cuja unidade devemos aprender a perceber. Há, antes de tudo, o dom do Senhor este dom é Ele mesmo: o Ressuscitado, de cujo contato e proximidade os cristãos têm necessidade para ser eles mesmos.
Sem Ele que sustenta a nossa vida, a própria vida é vazia
Contudo, não é somente um contato espiritual, interno, subjetivo: o encontro com o Senhor se inscreve no tempo através de um dia estabelecido. E deste modo se inscreve na nossa existência concreta, corpórea e comunitária, que é temporalidade. Dá ao nosso tempo, e, portanto à nossa vida no seu conjunto, um centro, uma ordem interior. Para aqueles cristãos a Celebração eucarística dominical não era um preceito, mas uma necessidade interior. Sem Ele que sustenta a nossa vida, a própria vida é vazia. Deixar ou trair este centro tiraria à vida o seu fundamento, a sua dignidade interior e a sua beleza.
Antídoto para o ativismo
Esta atitude dos cristãos de então tem relevância também para nós, cristãos de hoje? Sim, vale também para nós, que precisamos de uma relação que nos apoie e dê orientação e conteúdo à nossa vida. Também nós necessitamos do contato com o Ressuscitado, que nos sustenta até depois da morte. Precisamos deste encontro que nos reúne que nos doa um espaço de liberdade, que nos faz olhar para além do ativismo da vida quotidiana em direção do amor criador de Deus, do qual provimos e para o qual estamos a caminho.
“Sine dominico non possumus!”
Sem o Senhor e o dia que lhe pertence não se realiza uma vida completa. O Domingo, nas nossas sociedades ocidentais, transformou-se num fim-de-semana, em tempo livre. Especialmente na pressa do mundo moderno, o tempo livre é algo bom e necessário; cada um de nós o sabe. Mas se o tempo livre não tem um centro interior, do qual provém uma orientação para o todo, acaba por ser um tempo vazio que não nos reforça nem recria. O tempo livre necessita de um centro o encontro com Aquele que é a nossa origem e a nossa meta. O meu grande predecessor na sede episcopal de München und Freising, o Cardeal Faulhaber, expressou-se assim certa vez: “Dê alma a seu Domingo, dá ao Domingo a sua alma”.
Festa da gratidão e da alegria pela criação de Deus
Exatamente porque no Domingo se trata em profundidade do encontro, na Palavra e no Sacramento, com Cristo ressuscitado, a luz desse dia abraça a inteira realidade. Os primeiros cristãos celebraram o primeiro dia da semana como Dia do Senhor, pois era o dia da ressurreição. Mas muito cedo a Igreja tomou consciência também do fato de que o primeiro dia da semana é o da manhã da criação, o dia no qual Deus disse: “Faça-se a luz!” (Gn 1, 3). Por isso o Domingo na Igreja é também a festa semanal da criação festa da gratidão e da alegria pela criação de Deus. Numa época em que por causa das nossas intervenções humanas, a criação parece estar exposta a múltiplos perigos, deveríamos acolher conscientemente também esta dimensão do Domingo. Para a Igreja primitiva, o primeiro dia depois assimilou progressivamente a herança do sétimo dia, do sabbat. Participamos no repouso de Deus, um repouso que abraça todos os homens. Assim percebemos neste dia algo da liberdade e da igualdade de todas as criaturas de Deus.
Para além do Domingo
Nós mesmos temos necessidade deste olhar de bondade, para além do Domingo, até a vida de todos os dias. Ao pedir sabemos que este olhar já nos foi doado, aliás, sabemos que Deus nos adotou como filhos, nos escutou verdadeiramente na comunhão consigo mesmo. Ser filho significa, sabia-o muito bem a Igreja primitiva, ser uma pessoa livre, não um servo, mas uma pessoa pertencente pessoalmente à família. E significa ser herdeiro. Se nós pertencemos àquele Deus que é o poder sobre todos os poderes, então não temos medo e somos livres, e somos herdeiros. A herança que Ele nos deixou é Ele mesmo, o seu Amor. Sim, Senhor, faz com que esta consciência nos penetre profundamente na alma e que possamos sentir assim a alegria dos redimidos. Amém.
Fonte: Parte da homilia do Papa Emérito Bento XVI por ocasião da Comemoração do 850° Aniversário da Fundação do Santuário de Mariazell na Austria. Viena, 9 de Setembro de 2007.