Um fato histórico
Antes de mais nada, digamos algo sobre a ressurreição de Cristo como fato “histórico”. Podemos definir a ressurreição como um evento histórico, no sentido usual deste termo, que é de realmente acontecido, no sentido, isto é, onde histórico se opõe a mítico e a lendário? Para expressar-nos em termos do debate recente: Jesus ressuscitou apenas no kerygma, ou seja, no anúncio da Igreja (como alguém afirmou na linha de Rudolf Bultmann), ou, pelo contrário, ressuscitou também na realidade e na história? E mais: ele ressuscitou, a pessoa de Jesus, ou ressuscitou somente a sua causa, no sentido metafórico no qual ressuscitar significa sobreviver, ou a vitória de uma ideia, após a morte da pessoa que a propôs?
Vemos, portanto, em que sentido se dá uma abordagem também histórica à ressurreição de Cristo. Não porque qualquer um de nós aqui tenha a necessidade de ser persuadido a respeito disso, mas, como disse Lucas no começo do seu evangelho, para que verifiques a solidez dos ensinamentos que recebeste” (cf. Lc 1, 4) e que transmitimos aos demais.
A fé dos discípulos, salvo algumas exceções (João, as piedosas mulheres), não resiste ao teste do seu trágico fim. Com a paixão e a morte, a escuridão cobre tudo. Seu estado de espírito emerge das palavras dos dois discípulos de Emaús: “Esperávamos que fosse ele… mas já faz três dias” (Lc 24, 21). Estamos em um beco sem saída da fé. O caso Jesus é considerado encerrado.
Ressuscitou! Nós vimos!”.
Agora – continuando nosso trabalho de historiadores – vamos para alguns anos, ou melhor, algumas semanas, depois. O que encontramos? Um grupo de homens, o mesmo que esteve ao lado de Jesus, que vai repetindo, em voz alta, que Jesus de Nazaré é o Messias, o Senhor, o Filho de Deus; que está vivo e que virá para julgar o mundo. O caso de Jesus não só foi reaberto, mas, em pouco tempo foi levado a uma dimensão absoluta e universal. Aquele homem afeta não só o povo de Israel, mas todos os homens de todos os tempos. A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular” (1Pd 2, 4), ou seja, começo de uma nova humanidade. A partir de agora, sabendo ou não, não há nenhum outro nome debaixo do céu dado aos homens, no qual é possível salvar-se, a não ser aquele de Jesus de Nazaré (cf. At 4, 12).
O que provocou tal mudança que fez com que os mesmos homens que antes haviam negado Jesus ou tinham fugido, agora dizem em público estas coisas, fundam Igrejas e se deixam, inclusive, prender, flagelar, matar por ele? Em coro, eles nos dão esta resposta: “Ressuscitou! Nós vimos!”. O ultimo ato que pode fazer o historiador, antes de ceder a palavra à fé, é verificar aquela resposta.
A ressurreição é um acontecimento histórico, em um sentido muito particular. Ela está no limite da história, como aquele fio que separa o mar da terra firme. Está dentro e fora ao mesmo tempo. Com ela, a história se abre ao que está além da história, à escatologia. É, portanto, em certo sentido, a ruptura da história e a sua superação, assim como a criação é o seu começo. Isto significa que a ressurreição é um evento em si mesmo não testemunhável e atingível com as nossas categorias mentais que são todas ligadas à experiência do tempo e do espaço. E, de fato, ninguém vê o momento em que Jesus ressuscita. Ninguém pode dizer que viu Jesus ressuscitar, mas só de tê-lo visto ressuscitado.
A ressurreição, portanto, é conhecida a ‘posteriori’, em seguida. Como é a presença física do Verbo em Maria que demonstra o fato que se encarnou; assim a presença espiritual de Cristo na comunidade, evidenciada pelas aparições, demonstra que ressuscitou. Isso explica o fato de que nenhum historiador profano diga uma palavra sobre a ressurreição. Tácito, que também lembra da morte de um um certo Cristo” nos dias de Pôncio Pilatos, cala sobre a ressurreição. Aquele evento não tinha relevância e sentido a não ser para quem experimentava as suas consequências, no seio da comunidade.
Em que sentido, então, falamos de uma abordagem histórica para a ressurreição? Aquilo que se apresenta para a consideração do historiador e o permite falar da ressurreição, são dois fatos: primeiro, a súbita e inexplicável fé dos discípulos, uma fé tão tenaz a ponto de resistir até mesmo à prova do martírio; segundo, a explicação de tal fé que os interessados nos deixaram. Escreveu um exegeta eminente: No momento decisivo, quando Jesus foi capturado e executado, os discípulos não cultivavam nenhum pensamento sobre a ressurreição. Eles fugiram e deram por encerrado o caso de Jesus. Algo teve de intervir que, em um curto espaço de tempo, não só provocou a mudança radical de seu estado de espírito, mas os levou também a uma atividade totalmente diferente e à fundação da Igreja. Esse “algo” é o núcleo histórico da fé pascal.
Foi justamente notado que, caso se negue o caráter histórico e objetivo da ressurreição, o nascimento da fé e da Igreja se tornaria um mistério ainda mais inexplicável do que a própria ressurreição: A ideia de que o imponente edifício da história do cristianismo seja como uma enorme pirâmide pendurada sobre um fato insignificante é, certamente, menos credível do que a afirmação de que todo o evento – ou seja, o dado de fato mais o significado inerente a ele – tenha realmente ocupado um lugar na história comparável ao que lhe atribui o Novo Testamento.
Qual é, então, o ponto de chegada da pesquisa histórica com relação à ressurreição? Podemos apreendê-lo nas palavras dos discípulos de Emaús. Alguns discípulos, na manhã da Páscoa, foram ao túmulo de Jesus e descobriram que as coisas estavam como haviam relatado as mulheres, que foram antes deles, “mas a ele, não o viram” (cf. Lc 24, 24). Até a história vai ao sepulcro de Jesus e deve constatar que as coisas estão da forma como disseram os testemunhos. Mas ele, o Ressuscitado, não o vê. Não basta constatar historicamente os fatos, é necessário “ver” o Ressuscitado, e isso a história não pode dar, mas só a fé.  Quem chega correndo da terra firme rumo à costa do mar deve parar de repente; pode ir além com o olhar, mas não com os pés.
Fonte: Parte da quarta pregação de Quaresma para o Papa e a Cúria Romana, conduzida pelo  pregador da Casa Pontifícia, Frei Raniero Cantalamessa. Roma, sexta feria, 31 de Março de 2017.