O “grande mistério”
Uma importância fundamental a este respeito têm as palavras da  Carta aos Efésios:
“Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e se entregou a si mesmo por ela, a fim de santificá-la, purificando-a com o lavacro de água juntamente com a palavra, para apresentar a si próprio essa Igreja resplandecente de glória, sem mancha, nem ruga, nem coisa alguma semelhante, para que seja santa e irrepreensível. Desse modo devem também os maridos amar as mulheres, como o seu próprio corpo. Quem ama a sua mulher ama-se a si mesmo. Ninguém jamais odiou sua própria carne, antes, cada qual a nutre e dela toma cuidados, como Cristo faz também com a Igreja, pois nós somos membros do seu corpo. Por isso, o homem deixará pai e mãe, unir-se-á à sua mulher e passarão os dois a formar uma só carne.  Grande mistério é este:  mas digo-o  referindo-me a Cristo e à Igreja”  (5, 25-32).
Nesta  Carta  o autor exprime a verdade sobre a Igreja como esposa de Cristo, indicando igualmente como esta verdade  se radica na realidade bíblica da criação do homem como varão e mulher.  Criados à imagem e semelhança de Deus como “unidade dos dois”, ambos foram chamados a um amor de caráter esponsal. Pode-se dizer também que, seguindo a descrição da criação no  Livro do Gênesis  (2, 18-25), este chamamento fundamental se manifesta juntamente com a criação da mulher e é inscrito pelo Criador na instituição do matrimônio, que, segundo o  Gênesis  2, 24, desde o início possui o caráter de união das pessoas (“communio personarum”).  Embora não diretamente, a mesma descrição do “princípio” (cf.  Gên  1, 27 e  Gên  2, 24) indica que todo o “ethos” das relações recíprocas entre o homem e a mulher deve corresponder à verdade pessoal do seu ser.
Tudo isto já foi considerado precedentemente. O texto da  Carta aos Efésios  confirma ainda uma vez a verdade acima apresentada e, ao mesmo tempo, compara o caráter esponsal do amor entre o homem e a mulher com o mistério de Cristo e da Igreja.  Cristo é o Esposo da Igreja, a Igreja é a Esposa de Cristo.  Esta analogia não deixa de ter precedentes: ela transfere para o Novo Testamento o que já estava presente  no Antigo Testamento,  particularmente nos profetas Oséias, Jeremias, Ezequiel e Isaías.  As respectivas passagens merecem uma análise à parte. Citemos pelo menos um texto. Eis como Deus fala ao seu povo eleito através do profeta:
Não temas, porque não terá que te envergonhar; não te confundas, porque não terá do que te enrubescer; antes, esquecerá a vergonha da tua juventude, e não te lembrará mais da afronta da tua viuvez;  porque o teu esposo é o teu Criador,  cujo nome é Senhor dos exércitos;  o teu redentor  é o Santo de Israel, que se chama Deus de toda terra … Será por acaso, repudiada a mulher desposada na juventude? Diz o teu Deus. Por um breve instante eu te abandonei, e com grande afeto, voltarei a acolher-te. Num rapto de ira, ocultei-te o meu rosto por um momento; mas com perene clemência compadeci-me de ti, diz o teu redentor, o Senhor … Abalar-se-á os montes e os outeiros vacilará  mas a minha clemência de ti não se apartará  e o meu pacto de paz não vacilará (Is  54, 4-8.10).
Se o ser humano ― homem e mulher ― foi criado à imagem e semelhança de Deus, Deus pode falar de si pelos lábios do profeta, servindo-se da linguagem que é por essência humana: no texto citado de Isaías é “humana”  a expressão do amor de Deus, mas o  amor  em si mesmo é  divino.  Sendo amor de Deus, esse amor tem um caráter esponsal propriamente divino, ainda que venha expresso com a analogia do amor do homem para com a mulher. Essa mulher-esposa é Israel, enquanto povo escolhido por Deus, e esta eleição tem sua origem exclusiva no amor gratuito de Deus. É justamente por este amor que se explica a Aliança, apresentada frequentemente como uma aliança matrimonial, que Deus renova sempre com o seu povo escolhido. Esta aliança, da parte de Deus, é “um compromisso” duradouro; ele permanece fiel ao seu amor esponsal, embora a esposa se tenha demonstrado muitas vezes infiel.
Esta  imagem do amor esponsal  ligada com a figura do Esposo divino ― uma imagem muito clara nos textos proféticos ― encontra a sua confirmação e coroamento na  Carta aos Efésios  (5, 23-32).  Cristo  é saudado como esposo por João Batista (cf.  Jo  3, 27-29): antes, o próprio Cristo aplica a si esta comparação tomada dos profetas (cf.  Mc  2, 19-20). O apóstolo Paulo, que traz em si todo o patrimônio do Antigo Testamento, escreve aos Coríntios:
“Pois bem, eu sou ciumento de vós, do mesmo ciúme de Deus, por vos ter desposado com um único esposo, para apresentar-vos a Cristo como virgem pura” (2  Cor  11, 2).
A expressão mais plena, porém, da verdade sobre o amor de Cristo redentor, segundo a analogia do amor esponsal no matrimônio, se encontra na  Carta aos Efésios: “Cristo amou a Igreja e se entregou a si mesmo por ela”  (5, 25); e nisto se confirma plenamente o fato de a Igreja ser a esposa de Cristo: “O teu redentor é o Santo de Israel” (Is 54, 5). No texto paulino, a analogia da relação esponsal toma ao mesmo tempo duas direções, que formam o conjunto do “grande mistério” (“sacramentum magnum”).  A aliança própria dos esposos “explica” o caráter esponsal da união de Cristo com a Igreja, e esta união, por sua vez, como “grande sacramento”, decide da sacramentalidade do matrimônio como aliança santa dos esposos, homem e mulher. Lendo esta passagem, rica e complexa, que,  no seu conjunto, é uma grande analogia,  devemos  distinguir  o que nela exprime a realidade humana das relações interpessoais daquilo que exprime, com linguagem simbólica, o “grande mistério” divino.
Fonte: Parte da Carta Apostólica MULIERIS DIGNITATEM do Sumo Pontífce São João Paulo II, sobre a dignidade e a vocação da Mulher por ocasião do Ano Mariano. Dado em Roma, junto a São Pedro, no dia 15 de Agosto, Solenidade da Assunção de Maria Santíssima do ano de 1988, décimo ano de Pontificado.