“Quando rezamos falamos com Deus, quando lemos é Deus que nos fala.” (São Jerônimo)
Origem:
A origem da lectio divina está na religião hebraica, foi Deus quem tomou a iniciativa de se comunicar com seu povo, e deu-lhe capacidade de escutá-lo e respondê-lo. Uma característica peculiar da religião hebraica e cristã é a escuta; sem cessar encontramos na Bíblia a ordem do Senhor de escutar sua voz e sua palavra. Durante a época do Êxodo, Deus fala continuamente por boca de Moisés: “Ouve Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor…” (Dt 6,4ss).
A atitude mais digna do homem perante seu Criador e Pai sintetiza-se na escuta. Por isso o sumo sacerdote Heli ensina ao jovem Samuel como responder a voz divina: “Heli … disse a Samuel: ‘vai e deita-te, e se te chamarem, dirás: Fala, Senhor, que teu servo escuta’”
Desde sempre a escuta de Deus se deu através das Escrituras, os escribas e mestres de Israel a liam e estudavam, e era proclamada e explicada nas assembleias. A Bíblia contém a palavra do Senhor gravada com tinta em pergaminho; ela constitui o fundamento da fé e o alimento espiritual do povo de Deus, e deve ser lida, interpretada e atualizada, para que nutra todos os fiéis. A Bíblia é o grande tesouro de Israel, zelosamente guardado pelos homens a ela consagrados.
A Lectio Divina na tradição cristã
A Lectio Divina afunda suas raízes na religião judaica, no uso da sinagoga, na meditação ou releitura da Bíblia feita pelos rabinos e seus discípulos recebem esta herança e lhe infunde novo sentido espírito. A Igreja dos padres e dos monges, até o século XII conservarão e enriquecerão esta prática.
Os Padres:
Em Orígenes, doutor de Alexandria dos séculos II-III, vemo-la perfeitamente perfilada. É muito provável que aprendesse este método de seus mestres judeus. Orígenes considera a Lectio Divina como base necessária de toda a vida ascética, de todo conhecimento espiritual, e de toda contemplação. Para ele a Lectio Divinanão é meio, entre os outros, que ajuda a progredir na vida do Espírito, nem simples exercício de piedade. A Lectio Divina é na vida espiritual do cristão a Escritura lida, meditada, compreendida e vivida.
Os Padres da idade de ouro não foram mais do que repetir, cada qual a seu modo e em seu contexto histórico e cultural, essas idéias de Orígenes sobre o papel que desempenha a leitura da escritura na vida cristã.
Ler a Escritura é, segundo os Padres, obrigação principal de todo cristão. Os Padres não se cansavam de recomendar: vacare lectioni, studere lectioni, insistere lectioni. Pode-se dizer que a liturgia, obra do povo de Deus é uma Lectio Divina comunitária: alterna a leitura da Bíblia com sua meditação no canto dos salmos e na homilia; porém, para aproveite verdadeiramente a alma, é necessário que esta leitura comunitária seja fecundada pela leitura pessoal, feita privadamente, que seja como uma prolongação da palavra de Deus, feita em comunidade. São João Crisóstomo, santo Ambrósio de Milão, são Cesário de Arles, faziam questão cerrada nisso. O que se realiza na Igreja deve ser continuado fazendo-o cada cristão em sua casa, pois só assim é possível, “apropriar-se” da Palavra de Deus. Para são Gregório Magno, como para Orígenes, a Lectio Divina não é exercício isolado na vida dos cristãos, em certo sentido pode-se afirmar que é o essencial, pois não seria exagerado dizer que, para o grande papa-monge, o cristão perfeito é aquele que sabe ler a Escritura, com a condição de compreender que sua leitura compromete a vida inteira.
Os monges:
A santa Escritura foi confiada a todo povo cristão e por isso devem lê-la fervorosamente e freqüentemente todos os fiéis. A igreja inteira nutriu-se e continua a se alimentar deste pão. Entretanto, a história nos revela que a Lectio Divina foi praticada de modo peculiar nos mosteiros. A espiritualidade monástica está profundamente marcada pela Escritura, à qual reserva lugar preferencial.
Os pais do monacato, tanto no Oriente como no Ocidente, perceberam a importância da escuta da Palavra de Deus, e por isso insistiram no valor salvífico na leitura da mesma, inculcando sua necessidade para a vida de seus discípulos e comunidades. De fato a entrega do monge a Lectio Divina ocupa lugar primacial em seu dia. Junto com a oração e o trabalho. Esses homens e mulheres que abandonaram tudo pelo Reino, encontram-se em situação idêntica a do profeta Elias, que foi capaz de caminhar pelo deserto durante quarenta dias e quarenta noites até o monte Horeb, com a força do alimento que lhe deu o anjo do Senhor (I RS 19, 1-8). O monge encontra na palavra de Deus a força para perseverar no deserto, sem os consolos terrenos que oferecem os afetos de família e as satisfações do mundo.
Como indica o nome (monge = solitário), vive na solidão do ermo seguindo, sobretudo Jesus (cf Mt 4,1-11). E se este se alimentou durante esse longo período de prova com a palavra que sai da boca de Deus e superou a tentação com as armas da Escritura, o monge vence as tentações terríveis da solidão e os horrores do deserto da vida com o pão da palavra de Deus na Lectio Divina. Aqui está o segredo espiritual de tantas comunidades monásticas que floresceram no curso dos séculos tanto no Oriente como no Ocidente.
Decadência e restauração da Lectio Divina
Desde o século XII a expressão Lectio Divina vai-se desvanecendo e com ela a própria realidade a que se refere. Começa a devotio moderna, em que os mestres espirituais educam na oração mental, e por outro lado temo a “leitura espiritual” como exercício autônomo e específico, não orientado a oração. Esta leitura ademais vai se afastando da Bíblia e se nutrem sobretudo da hagiografia, escritores místicos, recentes, manuais de vida cristã e obras de meditação.
Devemos esperar o século XX para recuperar o uso e a praxe da Lectio Divina. Podemos dizer que é de moda em todos os momentos cristãos, por isso parece ser uma novidade algo tão antigo da Tradição cristã. A Lectio Divina é fácil de praticar e está mais de acordo com a psicologia atual. Por outro lado está na linha do interesse que hoje se visa dar ou devolver as fontes cristãs (Sagradas Escrituras, Padres, Liturgia), que constituem o patrimônio comum de toda a Igreja.
O Vaticano II aceitou e consagrou esse despertar e interesse pela Lectio Divina: O santo Sínodo recomenda insistentemente a todos os fiéis, especialmente aos religiosos, a leitura assídua da Escritura a fim de que adquiram a consciência suprema de Jesus Cristo (Fl 3,8), ‘pois desconhecer a Escritura é desconhecer Cristo. Recordem que a leitura da sagrada Escritura deve acompanhar a oração para que se realize o diálogo de Deus com o homem, pois a Deus falamos quando oramos, a Deus escutamos quando lemos suas palavras’ (DV 25)
Fonte: parte do Dicionário Teológico da Vida Consagrada – Editora Paulus – pg 593ss.